CoVida 1
MINHA CASA É MEU TUDO
Um
dia: quarta 18/03/2020
O
tempo estava bom, claro, tudo certo e calmo em casa.
Maria
passando roupa, eu vendo o que fazer para o almoço e meu marido lembra: hoje é
18, dia de pagar a Maria, vou ao banco.
Maria,
amanhã é dia de trocar roupa de cama, faz uma boa faxina no quarto, tá? Eu preciso
ir ao supermercado , geladeira já tá vazia,
acabou o mamão. Na sexta a gente cozinha, não tem nada pronto no freezer.
Ele
volta, conversou com o vizinho, encontrou conhecido, tá todo mundo preocupado,
ainda achou o rapaz das frutas que fica na esquina, trouxe mamão.
Almoçamos
com a tv ligada no jornal vomitando notícia ruim, péssima, absurda. Doentes,
infectados, hospitais lotados, mortes.
Itália,
Espanha, Estados Unidos. E na China continua. Não é aqui. Aqui é verão. Vírus
não progride no calor.
Melhor
mesmo a academia suspender as aulas, Sala São Paulo cancelou os concertos,
cinemas, teatros, festas, tá tudo suspenso.
Crianças
já estão sem aulas, uma professora tá doente. O cara que trabalha ao lado do meu
primo tá doente. O Whatsapp bombando, é sério, tá chegando, é preciso cuidado,
evitar aglomeração.
Cada
um fala uma coisa, mas o bicho vai pegar.
Maria
toma três conduções pra chegar aqui. Toma aqui seu dinheiro, a partir de amanhã
você não vem. Fica em casa.
Pronto.
Foi assim. Sem ensaio, sem preparo. E desde aquela quarta-feira, 18 de março,
não saio de casa. E ninguém entra. Não saímos de casa, meu marido e eu.
Vemos
filhos e netos pela telinha.
Minha
mãe cantava uma música em ídiche, Filhos de papel, eram as cartas e fotografias
que os pais recebiam na Europa, o que tinham pra ver dos filhos que escaparam
da guerra.
Agora
também estamos em guerra, como os governantes se referem a pandemia. A guerra é
contra inimigo oculto, escondidíssimo, mas que existe e pode ser fatal.
Velho
é grupo de risco. Somos velhos. Fica em
casa.
Pra
nós é uma guerra confortável, ficar em casa e esperar que o vírus enfraqueça é
a única luta. Mercados abastecidos, tudo pode ser encomendado pelo celular e
recebido no conforto do lar. Basta pagar.
A
bolsa despenca, o dólar sobe. Tudo sobe. Tenho um terreno alugado para um
estacionamento. Sem carros na rua, ele também fechou. Lógico que não me paga,
fazer o quê? Esperar passar, superar o tempo que se perde e vaza entre nossos
dedos, esta quarentena interminável já é noventena e continua o dia vira noite
sem que se perceba mais uma semana passou e já precisa comprar de novo o
remédio que acabou.
No
começo pareciam férias, sem horário, sem compromisso, já já passa. Relaxei,
inventei doces e coquetéis. Depois alucinamos, precisa limpar arrumar armários,
vamos aproveitar que estamos com tempo. Que saco! E foram sacos e sacos pra
doação que levamos num dia estipulado na portaria da Hebraica, sistema drive
thru, eficientíssimos.
Notícias
sobre a Covid e política são desencontradas, estúpidas, incoerentes. Ministros
sobem, caem, são fritos na hora do almoço, junto com o ovo espirrando gordura
no fogão.
Chega
como uma enxurrada imagens e mentiras fabricadas, há que se saber separar o
certo do errado, quem sabe?
Celular,
Internet, computador, televisão: sem sair de casa temos acesso ao mundo com
suas calamidades, a um toque do controle desfilam banalidades, outro mais e lá vêm
amenidades. A escolha é sua.
A
casa virou nosso tudo.
Aqui
durmo, acordo, cozinho, como, lavo. Choro, rio, mar e cachoeira. Brigo e
brinco. Nunca mais pulseira.
Minha
casa se transformou no meu restaurante preferido, especialidades variadas. Cozinha
aberta para café da manhã, brunch, almoço, lanche, jantar, ceia, toda hora é agora.
Comer
é necessário. Descobri que gosto e sei cozinhar. Fico horas perdida na internet
vendo receitas que nunca vou fazer.
Faço
lista do que precisa, na cozinha tem sempre um lápis pronto para adicionar
azeitona, nozes, pimenta. Sempre falta alguma coisa.
Perco
o sono completando a lista: fermento químico, fermento biológico, sabia que tem
seco também? Farinha de amêndoa? Nunca vou usar.
Preciso
mesmo de limão, tomate. Vou pedir também ovo, banana, laranja, pão, queijo.
Café e vinho. Não dá pra ficar sem isso.
Meus
afetos, como meus alimentos, vão se depurando. Reconheço e separo os essenciais
dos supérfluos.
Quem
amo, amo mais, mais falta me faz. Já chorei de saudades dos netos, por que será
que a gente sente tanta falta desses pequenos? Será que é porque eles despertam
nosso melhor lado, nos faz brincar, rir? Eles conseguem com tanta facilidade, basta
um sorriso, o bracinho deles num abraço e me derreto, cancelo tudo pra estar com
eles. O menor se lembrará de mim? Ele aprendeu a andar agora e não tem aonde
ir, meu pedacinho de gente. E os outros dois, que falam com tanta propriedade
em tablet, internet, aula online, quando deveriam jogar bola e brincar com
outras crianças. Fica em casa.
A
lista de essenciais encolhe. De pessoas a alimentos, de interesses a material
de limpeza e roupas.
Sapatos, bolsas, lenços, maquiagem descem. Da
roupa só quero conforto, lavar na máquina e não pensar em passar. Pra que
preciso de tanta coisa, não aguento mais usar blusas coloridas, estou ficando
como minha mãe, quase uniforme, calça preta, blusa lisa, neutra. Hidratante e
perfume subiram de nível, viraram fundamentais. A pele fica seca, a mão arde de
tanto álcool e cloro. Busco cheiro bom, ainda mais que um dos sintomas de se estar
contaminado é a perda de olfato.
Cheiro
bom do café coando, da cebola fritando, do alho no azeite.
Cheiro
de limpo da roupa esticando no varal. Do desinfetante no banheiro, do banho, do
corpo. Do vaso de lavanda que resiste e exala lembranças e frescor.
A
varanda é meu canto pra espiar a rua, meu bosque, minha horta. Pra meu encanto
e assombro tá verde e florida, como se nada houvesse de errado no ar.
Tem
espaço de lazer também, vejo série, filme, documentário, muito cinema com
pipoca. Até ganhei do meu marido pipoqueira
de silicone. Chegou um dia após o pedido pela internet, mesmo dia em que
assisti na tv um motoboy dizendo que não tinha convênio saúde, mas precisava trabalhar
e entregar produtos para pessoas que necessitavam com urgência. Herói nas ruas
pra me trazer uma pipoqueira de silicone. Será que ele traria se soubesse o
grau de futilidade do meu pedido?
O
computador é a sala de visita, encontramos família e amigos através do Zoom e
outros aplicativos, novas palavras e tecnologia foram incorporadas à rotina,
naturalmente. É também sala de reunião e sala de aula. Aprendemos rapidamente a
etiqueta destes encontros, atraso e falar ao mesmo tempo não são de bom tom.
Não basta, mas como tudo, a gente aceita, mata um pouco a saudade.
Minha
casa também é biblioteca, circulante em outro sentido, porque eu circulo, faço
rodízio pelos ambientes. Descobri mais lugares gostosos para ler, pode ser a poltrona
da minha sogra na sala, a cadeira de palha ao lado da janela com o sol batendo,
no sofá da sala, do escritório e na cama.
Meu
quarto é multiuso, depende da hora e do clima. Este ambiente já foi virado e
revirado, revistado e arrumado nesta fase de prisão domiciliar e agora respira
mais leve sem tanta tralha que abrigava. Se sol vira solário com janelas
abertas e pernas descobertas, nunca estiveram tão bronzeadas. Fim de tarde
nublado é biblioteca, espaço zen com abajur suave. A noite vira também cine
privê, com direito a namoro. Descanso, sono, e quem sabe, sonhos.
A
reforma deixou meu banheiro bonito, agora é branco. Dá até vontade de tomar
banho, sem hora marcada. De propósito. Preciso de alguma coisa, de muita coisa
diferente nessa mesmice. Tem dia que o banho é de madrugada, tem vez que escapa,
faz parte do plano. É também meu spa,
salão de beleza, manicure, pedicure e onde me assusto com os reflexos brancos que
tingem meu cabelo. A reforma deixou um porém, saiu a banheira e o piso ali empoça
água no canto. Não me incomodava porque não via, ou melhor, não limpava, muito
menos secava. Agora coabitam na prateleira embutida do box sabonete líquido, shampoo
e condicionador, veja campestre, esponja e rodinho. Meu banho demora ainda
mais, esfrego parede e chão e porta de vidro, depois enxáguo e passo com vigor
o rodinho. Quando termino estou suada, mas não sou louca de molhar de novo o recinto.
Um pouco de água insiste em rodear o ralo, e é aí que tá a graça: sou a própria
jogadora de golfe, dou a tacada, a água passa pra lá e pra cá e não entra. A
ordem é ressignificar, o box virou campo de golfe! Essa faxina toda não é
diária, nunca na madrugada nem quando tá frio.
Dia
de passar pano no chão e esticar lençol no varal equivale a musculação mais aeróbica,
pra que preciso de academia.
O
corredor aberto é a pista de cooper, a pista de dança, de ouvir música, o
espaço do Lian Gong, da meditação. Danço, transpiro, medito, inspiro, expiro. Aspirar,
ele aspira.
A área de serviço é o local de desinfecção.
Quando a compra pedida do supermercado chega é abatida com spray anticorona,
cada banana ou batata pode ser um agente infiltrado. Há que se desconfiar
daquela cenoura ou do pacote de arroz. Nada nem ninguém é inocente.
Tô
ficando com fome. Hoje é domingo, pede cachimbo. Lembra quando a gente achava
que era pé de cachimbo? Verdade que quando me sento na poltrona da minha sogra,
que era de tecido e agora é de couro marrom, pego o pufe para os pés, uma
manta, acendo o abajur e pego o livro (sim, aquele canto é só pra
noite/madrugada) penso que seria bom um conhaque e um cachimbo.
Parei
de fumar, faz tempo. Mais de três anos. Faço questão de não ter marcado data,
nenhuma efeméride digna de lembrança, foi uma perda mais que uma conquista.
Mas
hoje é domingo, 24 de maio do mesmo ano do Senhor de 2020. Agora são 19h48min. Hoje
acordei tarde, tarde até que arde, tomei café na hora do almoço e só. Vou
comer. Depois te conto o quê.
Foi
sanduiche de pão de forma integral com pastrame, mostarda, pepino azedo. Terminamos
também a torta de alcachofra. E vinho. Nada mal pra época de crise. É uma época
assustadora e transformamos a casa em refúgio, fica em casa, se velho pega o vírus, morre. Mas enquanto está vivo
acho que não precisa sofrer. Coisa que me deixa triste é desperdiçar fome com
qualquer coisa. Gosto de comer bem.
Estas
gostosuras foram compradas na sexta, fiz o pedido por telefone numa Deli, comprei
também chalás e hering, três de tudo, pra minha casa, e para as casas dos meus
filhos. Máscara na cara, luva e lá fomos nós pegar as encomendas no estacionamento
do empório e distribuí-las.
Adoro pensar
no que dar aos meus filhos, recebia da minha mãe surpresas, como era bom chegar
presentes inesperados e agora, ganhar comida pronta é um luxo. Eu acho.
E já é
junho, dia 16. Nada aconteceu. Aqui tá tudo bem, espero que aí também. Fica
bem. Fica em casa.
Gostei muito, Ita! Primeiro o mundo nos enche de pressas e necessidades, de pessoas queridas que curtimos abraçar, depois nos manda fica em casa e diz que todos de fora são perigosos. Coisa de doido.
ResponderExcluirAnjos reais, adoro seu nome. Bom ter você por perto
ExcluirNesse texto vc trouxe as alehrias e as incertezas desse tempo que estamos vivendo. Parabens
ResponderExcluirObrigada, querida
ExcluirEsse você já sabe que adorei!!!
ResponderExcluirE parabéns pelo blog!!!
😘
Vera Tempel
Obrigada
ExcluirQue show esse blog. Mazal Tov!
ResponderExcluirJá conhecia esse texto, e me faz lembrar do começo da pandemia e de todas as coisas boas e ruins que nos aconteceu.
Mas, tamo aqui firme e forte, pode vir Corona, que nois te traça.
Tava feliz, não precisava ir pro escritório, e podia ver a mamãe.
Que nada, era só o começo.
Haja vinho, e gordice, tudo pra dentro!
Te amo,
Ioiô
Esperando por bons e magros tempos gordos
ExcluirBj, Iô