CoVida 2


De novo domingo

12/07/2020

Aquela velha sensação desagradável, a ligeira insatisfação que dava no domingo à noite quando a gente (ainda assistia) ouvia a música do fantástico lembrando que amanhã é segunda-feira, dia de acordar cedo, de voltar à rotina, persiste de tonta. O que amanhã será diferente de hoje? Agora todo dia é dia: inútil fútil útil, só depende de mim.

Mais uma semana. Faltam duas semanas pra anunciarem que daqui a duas semanas só precisaremos esperar duas semanas pra tudo voltar ao normal. Já leu essa, né? O whatsapp espalha tudo pra todos, causando muito estrago e fofoca, sujando ventiladores.

Não é verdade que nada aconteceu. Todos os nascidos entre meados de março até agora, todos os peixes do último decanato, todos os arianos, taurinos, gêmeos e agora os de câncer completaram mais um ano em casa, sem festa.

Mais um aniversário não é muita coisa, mas meu irmão fez 70 anos, teria festa. Meu sobrinho neto se preparou um ano para o Bar Mitzvá, teria festa. Quantos planos e sonhos estilhaçados! Isto também não é muita coisa, pensar em festa em meio ao caos não pega bem. Não pega bem se o casamento não era seu ou de seu filho, se você não era o dono do buffet, do salão, das flores, da loja de roupa de festa e tudo que envolve o ramo. O Buffet França fechou!

Quantos bebês nasceram sem que avós e tios pudessem conhecê-los! Quantas mamães novas choraram sozinhas exaustas sem ajuda! Isto também não é muita coisa, a mãe se acostuma com o choro, com as noites mal dormidas, sem o abraço, o conforto e a segurança da mãe-avó e da irmã que lhe assegure que o bebê é lindo, que é natural essa carinha de joelho, que sua barriga já diminuiu o corpo logo volta ao normal, que lhe faça um chá e diga durma, eu olho o bebê!

Quantas tias estão em casas de repouso sem receber visitas e se sentem confusas, mais abandonadas ainda, sem entender o que tá acontecendo?

Quanta gente perdeu o emprego, a saúde, perdeu o juízo.

Quantos negócios faliram, falharam, fecharam?

Quantos ficaram doentes, quebraram a perna, descobriram um câncer.

Quantos morreram de covid e de tudo o mais que não entra na conta. E quantos ficaram sozinhos sem poder se despedir.

Não posso dizer que nada aconteceu.

Aqui no meu canto soube de tudo isso, de histórias, casos e situações difíceis e bem ou bem mal tudo passa. Cada um aprende a cuidar das suas feridas e angústias, cada um encontra um meio de seguir respirando.

Nuvem de gafanhotos, tufão, chuva de granizo, peste... Quando será que o mar vai se abrir e o povo poderá voltar a caminhar livre? E mesmo assim, quem tem visto nestes dias os pores de sol mais incríveis? O céu vai rosando certamente por perceber tanta gente rezando.

Não sei de você, mas ultimamente me pego rezando, agradecendo. Reconheço a cada instante o milagre de continuar sã e de relativo bom humor, mesmo sem previsão de nada, nenhum plano, absolutamente nada no horizonte.

Talvez o plano seja não ter plano e seguir a prece dos A.A.

Concedei-nos, Senhor,

A Serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar,

Coragem para modificar aquelas que podemos,

E Sabedoria para distinguir umas das outras.

E viver um dia de cada vez.

Dá uma serenidade gigante saber que o “fica em casa” é minha obrigação agora pra manter a mim e ao outro longe da covid.

Não é bem assim. Um monte de estudos aponta que muitos contraíram o vírus em quarentena rígida, e que uma simples correspondência pode ter infiltrado o maligno dentro de casa.

Dá pra entender que guerra é guerra? Fora as guerrilhas, as notícias emboscadas, os milicos e milícias atacando pelas beiradas.

Será que terei coragem de sair um dia? Ir ao restaurante, ao cinema, ao mercado? Encontrar pessoas, enfrentar filas, conversas, aguentar barulho?

Largada como estou, sem sapato e soutien, dormindo, acordando e comendo quando tenho vontade, confesso que me acostumei e será difícil entrar na linha de novo. Preciso disso? Não pode ser meu novo normal? Já trabalhei, criei filhos, acordei cedo, corri atrasada por emendar um compromisso no outro, agora mereço sossego, não pretendo abrir mão do meu tempo.

E se eu quiser continuar em casa? Será alienação ou instinto de sobrevivência esta adaptabilidade bovina, este tanto faz, este não querer?

Enfim, continuamos todos bem, espero que você também.


Comentários

  1. Dizem que é "síndrome da cabana" , mas tb não sei se quero sair de casa e fazer milhões de coisas.
    Vc escreve conversando, batendo papo num café :)

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  2. Pois e Ita
    Voce descreve muito bem nosso dia a dia com covid.
    Espero, de coracao, que em breve voce possa contar como nos readaptamos a vida sem ele.
    Um grande abraco e por favor, continue escrevendo, por alguns momentos voce nos tira desse periodo tao desinteressante que estamos vivendo.
    Norma

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  3. Que texto sensível, Ita! Amei!
    Dorothea

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  4. Nesse texto vc trouxe a cada leitor suas proprias angustias. Gostei !
    Fany

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  5. Ita, 👏👏👏
    Perfeito!
    Sinto falta dos encontros familiares, dos beijos, abraços e amassos nos filhos e netos, dos papos com os amigos tomando um café. Mas estou bem na minha casa, no meu canto.
    Preciso apenas entender qual é o meu novo normal.
    😘
    Vera Tempel

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  6. Verinha, é um tempo sem entendimento.
    Que passe logo!

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  7. Esse texto pega na veia. Lindo.
    Sou de gêmeos, e fiz 56 anos, sem pizza, sem Giggio, sem nada. Alguns telefonemas, e whatts.
    Perdemos a festa do Horácio, 70 anos.
    Eu disse que ele tava muito bonito e bem. Graças a D'us.
    Conheço sua tia, aquela da casa de repouso, com as pernas quebradas e a surpresa de um câncer. É na garganta dói.
    Ela não reclama, não chora, ela é linda, ela é minha mãe.
    Obrigada por colocá-la nas suas lembranças, e nas suas rezas.

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