Era amora

 

Era amora. Esta é a minha história com a minha memória da amora.

Eu tinha cinco anos e já conhecia a excitação que uma viagem provoca. Não era a primeira nem a última vez que fui de São Paulo para São Lourenço, sul de Minas, mas essa me marcou. Por causa da amora.

O percurso já era um acontecimento e durava quase o dia inteiro. O destino era a casa dos meus avós maternos, onde tudo era permitido.

Finalmente chegou o dia: minha mãe, malas, sacolas, meu irmão (três anos mais velho) e eu chegamos cedinho na Estação da Luz para embarcar no trem de ferro até Cruzeiro, onde descíamos para fazer a baldeação.

Esse trecho durava a manhã toda, chegava na hora do almoço e então, em algum banco da estação, minha mãe abria a sacola do lanche e tirava frango assado, pão e laranjas descascadas.

Comíamos com vontade e esperávamos para seguir em outro trem, lento, de madeira, da Rede Mineira de Viação. As letras RMV apareciam orgulhosamente pintadas em letras grandes no exterior dos vagões e bordadas em panos amarrados no alto dos encostos dos bancos. A sabedoria popular logo rebatizou de Ruim Mas Vai.

O maquinista não tinha pressa, diminuía ainda mais a velocidade e parava em todas estações pelo trajeto. Passava Passa Quatro, Itanhandu, Soledade, nomes que ficaram na saudade.

Às vezes subia um homem carregando galinha viva, mulheres com pacotes e crianças. Em outra parada descia uma pessoa com sua malinha dura e também acontecia de não ter viva alma em alguma estação abandonada.

Foi numa destas que dois garotos esperavam para vender amoras em cestinhas trançadas de palha. Pela janela eles ofereciam a frutinha, insistentes. Nós de dentro, insistíamos: eu quero, eu quero!

Mamãe comprou uma de cada menino, uma para cada filho. Não admitia motivo para discussão entre nós.

Aquelas amoras graúdas, doces, explodiam suco vermelho na boca, tingindo dente, língua, mão. Bons comerciantes, acomodavam no fundo da cestinha as miúdas, azedas, enrugadas.

O pobre do trem precisava vencer um trecho escarpado da Serra da Mantiqueira, subia com dificuldade, soltando fumaça pesada. A locomotiva fazia força entre as curvas e mais curvas e outras mais. O ar ficava mais frio, a tarde já estava acabando e nós ainda sacolejando.

Fui ficando enjoada e antes de conseguir falar, um jato vermelho vivo voou da minha boca, atingindo e tingindo toda minha roupa e a do meu irmão, sentado ao meu lado.

Foi um sufoco, um deus nos acuda, pessoas assustadas gritavam - a menina tá vomitando sangue! - susto geral até minha mãe lembrar que não era sangue, era amora.

 

Passaram-se 65 anos. Mês passado, meu irmão e esposa, meu marido e eu, curtimos uma viagem de navio. Navio também é lento, deu tempo para falar tanta coisa, tanto causo e meu irmão se lembrou de uma viagem de trem quando ele tinha 8 anos.

Lógico, lembrei do causo com cores e cheiros!

Estava indo bem, contou do frango assado, do calor que fazia em Cruzeiro, do Ruim Mas Vai, da amora e do vômito dele.

Fiquei irada! Aquele vômito era meu, ele pegou minha história da memória da amora.

Mamãe não está mais aqui, não podemos perguntar quem tem razão. Certamente ela diria que nós dois passamos mal.

Ela não admitia discussão entre nós!

Comentários

  1. Beleza de registro. Ótimas recordações. Parabéns.

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    1. Registro era outra estação! Você também viajou!

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    2. NÃO SEJA MAIS ANÔNIMO, ADORARIA SABER QUEM É VOCÊ!

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  2. Viajei com você nesta História. Quase pensei que no Navio, você ou seu irmão, iriam repetir a dose.
    Adorei Muito essa historia! Conta mais 😊

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  3. Tão bom ter histórias da infância para lembrar. Deu até vontade de comer amoras, sem o trem chacoalhando, claro.

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    1. Daniel, pena que não existe mais este trem, era ruim mas ia! Amora, agora, você vai encontrar congelada, misturada, batizada de frutas vermelhas!

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  4. Ita, deixou gosto de quero mais :)
    Conta outra Ita

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  5. Em minha infância andei muito nos trens da RMV. Trechos semelhantes. Soledade é a terra natal de meu avô, de quem herdei o nome. Obrigado por me fazer voltar a esses tempos e lugares! Bjs!

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    1. Serafim, quanto trem bão nós vivemos nas terras dos avôs, némesmo?

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  6. Ita querida, que delicia de lembranças, e poder olhar pra elas com a maturidade que nos cabe hj é muiito bom...
    Bjs

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  7. Delicia de lembranças!

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  8. Ita, ITA, ITAAAAA querida,
    Esta me pegou de forma inexplicável. São Lourenço mexe tanto com a nossa história, com a minha vida, com a da Ruth, com a nossa...
    Lembro tanto dos seus pais!
    Lindo texto, lindas e doces lembranças.
    Beijos,
    Beth

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    1. Beth, gostoso saber que meu causo te tocou! De São Lourenço para o mundo!

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  9. Linda historia Ita! Parabens por saber contar com estes detalhes. Aprendi finalmente o que é RMV! Quanto ao Horacio não sabia ele era "ganef" desde criancinha! Bjs

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    1. Ele não tem culpa, memória é assim mesmo: a gente escolhe, adota umas, rejeita outras!

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  10. Adorei seu relato....memórias ....das amoras!!! Senti o cheiro do trem....valeu

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    1. Ai, não, apaga o cheiro do trem com aquela fumaceira e depois o vômito...

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  11. Ita, mais prazeiroso que viajar no
    tempo é saber que você e seu irmão seguem juntos.
    Sua mãe não admitiria separação entre vocês!
    Sandra Grunberg

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  12. Adorei, revivi minhas viagens nestes trens, saia de SP às 20,00 horas e chegava em SLço às 07,00. Parabéns pelo texto e obrigada por repartir suas lembranças. Raquel

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  13. Quanta memoria pode trazer uma amora !!! Voce traz pra cada um de nos lembranças e cheiros da nossa infancia !!!!

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  14. Ita, beleza de história.
    Um abração saudoso.

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  15. Adorei... como é bom relembrar momentos tão gostosos

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  16. Ótimo texto, tempos bons. Quem seríamos se não tivéssemos histórias para contar ?? Timotheo

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  17. Quando nos conhecemos vc ainda passava ferias em Sao Lourenço e eu em Itajubá.
    Quantas historias contamos.

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  18. Conheci muito bem esse trem!!!Saudades!!!

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  19. Estes momentos ficam, não só da amora, mas do frango assado embrulhadinho na estação. Nos remetemos a estes locais. Parabéns

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