minha carta para você

 

São Paulo, 22 de dezembro de 2021

 

Oi, como vai você?

Espero que esteja bem, muuuiiito bem e que fique ainda melhor a cada novo dia.

Geralmente começavam assim as cartas que escrevi para as crianças atendidas pelo projeto felicidade, inspirador desde o nome e que, infelizmente, também se acabou durante a pandemia.

Foram muitas, numa conta rápida cerca de duas mil cartas durante os mais de 13 anos de trabalho voluntário onde minha contribuição era responder às cartas que terminavam assim: com carinho dos amigos do projeto felicidade.

Este projeto recebeu milhares de crianças carentes em tratamento de câncer que, acompanhadas de suas famílias, ganhavam cinco dias de passeios e brincadeiras, para se esquecerem um pouco do hospital e receberem uma injeção de ânimo e coragem para continuar o penoso tratamento.

Hospedagem em hotéis, refeições, atividades, presentes, tudo era patrocinado por parceiros do Beit Chabad de SP, instituição judaica beneficente, e as famílias eram acompanhadas por voluntários em todos os momentos.

Era natural que após estes dias de convívio viessem as cartas de agradecimento e nós, da equipe responsável por respondê-las, incentivávamos os remetentes a continuar escrevendo e mandando notícias.  

A maioria das cartas contava que a criança reagira bem ao tratamento, já havia retornado à escola, que ganhara um cachorrinho, uma bicicleta...

Muitas relatavam as intercorrências, a necessidade de nova cirurgia, o desemprego do pai, a vida como ela é. E vieram algumas tristíssimas, da mãe anunciando o falecimento do pequeno, em um desespero sentido na letra amarga ou arrastada, sem força.

A letra manuscrita guarda segredos e eu era capaz de adivinhar o estado de espírito de quem as escrevia. Gratidão verdadeira, cansaço, só obrigação, algum pedido com humildade, tantas palavras escritas, lidas, relidas, respondidas, arquivadas com cuidado.

Como estarão aquelas crianças, adolescentes, alguns já adultos, será que venceram o câncer, será que estão bem?

Nos últimos anos, e-mails foram aparecendo em vez de cartas. Até mandávamos envelopes já endereçados e selados, mas o danado do imediatismo e praticidade versus preguiça ganhou fácil. Diminuiu a frequência das cartas. E a situação econômica, mesmo antes da pandemia, afastou muitos dos contribuintes e o projeto foi encolhendo.

Tudo que é bom acaba, após 19 anos isto também se acabou.

 

Sempre tive pessoas queridas que moravam longe. Meus avós, que eu amava demais, moravam em outra cidade. Quando aprendi a escrever achei natural contar por carta o que fazia, perguntar, querer estar perto de alguma forma.

Depois vieram amigas, amigos, tempo dedicado a escrever fazia parte do meu dia e as cartas recebidas eram guardadas como tesouro.

Nada se compara a emoção de receber uma carta manuscrita com seu nome no envelope, alguém aí chegou a borrifar perfume no papel de carta?

Eu sim, que prazer escrever e, mais ainda, receber uma carta.

Cartas de amor, de amizade, de confidências, de pedidos. Algumas bobas com receita de bolo, indicação de remédio, letra de música, mas, sempre, com saudade embutida.

Por escrito a gente perde o pudor e derrama palavras meladas, é natural o “minha querida, que falta eu sinto de você...”

Não existe a desculpa esfarrapada de escrever sem pensar. Carta precisa ser pensada, muitas vezes corrigida e passada a limpo. Passar a limpo, que termo mais antigo e cuidadoso, quem passa a limpo o que diz hoje?

Quanta besteira é expelida nas conversas rápidas do WhatsApp!

Estou escrevendo esta carta para que um dia você a leia e, quem sabe, resolva escrever e se lembrar como faz bem pensar por escrito. E então, diga por escrito aquelas palavras trancadas que soltas farão tão bem a você e a quem espera por elas.

Esta é minha esperança porque o escrever só se completa quando alguém ler.

E assim, senhoras, senhores e bichos voadores, meus amores, meus leitores, termina a minha carta.

Despeço-me de vocês, esperando boas notícias, um caminho de delícias, um caminhão de alegria e muita sorte pra todos.

A vida dá volta, reviravolta, cambalhota, quem sabe escrever cartas vire moda e a gente se escreva e se reconheça pela letra também!

Vá em paz 2021, em vinte e dois não vou deixar nada pra depois, já esperei demais.

 Com carinho da amiga cheia de visões, distrações e distorções, 

                           Ita

Comentários

  1. Que espetacular, Ita! Que delicia rememorar as cartas que também escrevi e recebi. Uma emoção indescritível! Tenho cartas guardadas ate hoje. Muito especiais e poderosas.
    Parabéns pelo texto, pelo trabalho, pelas palavras pensadas, pela viagem!
    Um beijo carinhoso!

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  2. Gostei muito Ita :) me lembrei das muitas cartas que escrevi . Pra meus netos também conforme fora aprendendo as letras. Realmente é muito bom colocar palavras no que sentimos. Obrigada

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  4. Que lindo Ita!! Parabéns!! Quantas lembranças as cartas nos remetem... Ainda tenho guardadadas, num cantinho especial, aquelas que realmente me marcaram!! Doces tempos em que esperavamos ansiosas a visita do carteiro ou de uma pessoa que servia de mensageiro!! Beijos querida!! Fique bem, juntamente com sua linda familia!! Mina

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    1. Mina, obrigada, querida.
      Hoje, mesmo com os filhos morando longe, perdeu-se o ritual de escrever a mão, tudo deve ser rápido, pra já, que pena!
      Ou que sorte!
      bj

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  5. Que maravilha, Ita. Que saudade do tempo em que escrever uma carta era aproximar-se dos distantes, enganar a distância. Parabéns pelo texto e mais ainda pela iniciativa.

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  6. Sempre gostei de escrever, mas meu forte nunca foram cartas... recebi poucas em minha vida, infelizmente! A sua dá gostinho de " quero mais"...

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    1. Suely, obrigada. Talvez você queira voltar a escrever e já comece uma carta para o neto que está chegando!
      Confesso, eu escrevi cartas de boas vindas para cada um dos meus netos!

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  7. Como você escreve bem Ita! Ainda estou a sentir o perfume no papel repleto de coisas bonitas.
    Não me deixe ficar sem as suas palavras.

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    1. Paulo, fiquei feliz ao ver sua mensagem.
      Perdoe pelo plágio, mas é verdadeiro: não me deixe ficar sem as suas palavras.

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  8. Belo trabalho voluntario vc fazia no Projeto Felicidade....pena que acabou.
    Em 22 vou imitar vc, não vou deixar nada pra depois....o tempo urge...
    Que seja um ano muito abençoado pra todos nós.
    Bjão

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    1. Era bonito mesmo, Tereza, a gente sabia que ajudava aquelas pessoas.
      22 vai nos trazer mais um presente, muita saúde e sorte pra todos!

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  9. Adorei! Me lembrei de tantas cartas q escrevi desde a colônia de férias....até para namorados! Otimas lembranças.. e parabéns pelo lindo trabalho no Projeto Felicidade...

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  10. Que bela carta, Ita! Como sempre, você me emocionou!

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    1. Você também conheceu o projeto, Dorothea, e garanto que já escreveu muita carta...
      Obrigada pela atenção

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  11. Voce me colocou numa viagem do tempo !!! Como é bom deixar o pensamento visitar nossas memorias !! Adorei...fanyn

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    1. Obrigada, Fany.
      Sei que você gosta de uma viagem, que bom poder te proporcionar uma!

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  12. Que prazer receber sua carta, Ita. Você descreve exatamente a emoção que sentimos ao recebê- la.
    Que tenhamos um Ano Novo com saúde, alegrias e sonhos.
    Um abração.
    Ana Timotheo.

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    1. Ana, agradeço pelo carinho.
      Um novo ano fácil, leve, feliz pra você e seus queridos.

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  13. Sou testemunha da responsabilidade, esforço, dedicação, carinho e coração que você punha nestas cartas, que mexeram tanto com tantas famílias e diretamente e indiretamente, com a nossa. Mami, alguns heróis usam capas; outros usam caneta, papel e adesivos coloridos. Kol Hakavod por tudo o que fez e faz. Beijo grande do seu filho pequeno.

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  14. Rafa querido,
    Ser herói de filho adulto é missão impossível, você me emocionou!
    Seja feliz, meu filho

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