V I O L E T A
Ela
só acreditou que as coisas estavam péssimas quando viu a violeta: estava morta,
sem mais chance, sem mais remédio. Algumas folhas ainda mantinham o veludo, mas
as raízes despedaçadas dentro da terra sustentavam caules murchos e ressequidos.
Cuidava
das plantas, da família, do rosto, do corpo, da vida, com o mesmo pouco caso e
preguiça, como se nada tivesse muita importância ou urgência. Somente ia
levando, empurrando tempo e decisões, meio ausente, um tanto carente.
Só a visão da violeta morta lhe fez
compreender que corria perigo: ela apodreceu por dentro, sem dar sinais
externos, sem pedir socorro, num suplício sem retorno. E ela era a única
responsável, por não lhe ter dado atenção, por deixar, como sempre, o barco
correr até naufragar.
Aquela perda a deprimiu muito, tanto que não conseguia
pensar em outro assunto. Nada era tão sério que não lhe sobrasse um fundo de
alma pensando na violeta. E ela, Íris de nome, repensou sua vida, chamou-se
Violeta e se jogou fora.
Ganhou a violeta num dia complicado: ela fazia cinquenta anos, idade mutante, pesada de cobranças íntimas, uma passagem sem volta na roda da vida. Há anos imaginava como seria então: uma mulher completa, vivida, sem as agonizantes indecisões e receios que tanto a incomodavam.
Os cinquenta lhe trariam a resposta – era uma lei natural.
Recebeu de modo tão singelo quanto o próprio presente. Chegou na cozinha e na mesa já posta para o café, encontrou no lugar de sua xícara um vasinho de plástico com quatro folhinhas nascentes de violeta, sem flor, sem papel celofane, sem laço de cor
- Até parece um trevo de quatro folhas, sei que vai me dar sorte! – pensou, abraçando o vasinho. Então reparou no pedaço de papel onde uma letra forçosamente caprichada dizia:
Dona Íris
Parabéns para a senhora
Muitos anos de vida
- Maria, Maria – foi chamando pela área de serviço, aparando na mão a emoção.
- A senhora chamou? – Maria veio mansa, carregando um enorme sorriso no meio do rosto.
Então ela agradeceu daquele jeito tão seu, com pulos de euforia. Sabia deixar feliz quem se lembrasse dela, fazendo de qualquer presente ganho uma coisa máxima, essencial.
Foi assim que entrou em sua nova idade, com presente, festa e alegria.
Passou um mês, outro e outro e ela se esqueceu de tudo aquilo que esperava. Continuou, sonhando menos, encolhendo ideais, recolhendo-se.
As folhinhas cresceram e se multiplicaram, vieram pequenas flores brancas, frágeis.
Depois de um tempo as flores caíram, mas as folhas já grandes mantinham-se fortes e pareciam dizer que já não precisavam dela: estavam acostumadas no seu canto e um pouco de água era só o que queriam.
Como a violeta, sentiu tudo em sua volta dizendo o mesmo – filhos, marido, ocupações, amigos – tudo podia se ajeitar muito bem sem ela. E sem função, sem mais porquê, parava calada lembrando-se das suas risadas rasgadas, do seu entusiasmo e vontade, sem saber agora como alcançá-los.
Então, deixou de se regar, secou-se no vazio, parou de procurar motivos, de agradecer o presente.
Às vezes, até se assustava quando sentia uma palpitação maior, um minuto de ternura, um olhar pedinte de carinho dela. Dela... Como poderia agradar alguém se não se suportava mais?
Até que um dia, olhando o canto, viu a violeta. Ela estava morta. Ela não tinha mais chance. Ela.
Jogou-a fora, com terra e vaso. Atravessou a casa, correu ao banheiro e se assustou com sua imagem abatida, envelhecida. Treinou um sorriso e não ficou reparando nas rugas, mas encontrou seus olhos e se admirou por eles continuarem azuis.
Tirou a roupa devagar, lembrou-se que era mulher.
Abriu o chuveiro, deixou a água fria escorrer pelo seu corpo, regou-se inteira, inundou-se de vida, resgatou seu ser.
Que lindo Ita! Como escrever bem sobre recomeços com a mão abraçada por uma visão repleta de vida.
ResponderExcluirRepito: lindo poema!
Paulo,
ExcluirVc não imagina como fico feliz com seu comentário tão generoso.
Obrigada
Sensível, profunda, a poesia da Ita tem um saber, um sabor de Lispector. Parabéns Ita. Por quanto tempo essa sensibilidade esteve represada? Tem hora que não dá mais pra segurar, sorte a nossa.
ResponderExcluirMohandas, estou sem palavras após seu comentário tão grandioso.
ResponderExcluirComo será escrever daqui pra frente?
Agora, só posso agradecer.
Muito, muito lindo !!!
ResponderExcluirIntenso em sensibilidade e feminilidade! Muito Ita! Parabéns querida! Bjo
Ah, minha amiga
ResponderExcluirIsso é muito Iafa
Bj
Lindo!💕🦋
ResponderExcluirObrigada, minha querida
ResponderExcluirO renascimento de uma nova fênix está em curso . A água fria despertará o amor próprio que se acha dormente e esgotará os desencantos , solidão e “ desencanos” de nossa encasulada Iris / Violeta ( sim , já me sinto íntimo dela ) . Não poderia haver melhor desfecho para tão primoroso texto , como torci por ele . Um brinde aos ciclos de vida que se renovam . Parabéns.
ResponderExcluirAdoro um brinde, Timotheo
ExcluirE com a taça na mão desejo a todos novos e felizes ciclos.
Tatiana
ResponderExcluirIta,
Sua escrita é repleta de emoção, de vida.
Obrigada por compartilhar comigo e me dar a oportunidade de me encantar com a leitura!
Tati, só vê o encanto quem o tem
ExcluirObrigada
Lindo conto!
ResponderExcluirOi, Renata
Excluirobrigada pelo incentivo!
Parabéns lindo!
ResponderExcluiremeve, obrigada
ExcluirAdorei. 😘
ResponderExcluirObrigada, Monica
Excluirbj grande
Ita querida, parabéns....incrível
ResponderExcluirObrigada, Te
ResponderExcluirBom saber que vc me acompanha!
bj, vó